David pediu desculpa pela intromissão. Avisou que era inteligente. E, permanecendo sempre imóvel, fez uma incursão pelo seu passado, numa lição de vida que, tão depressa, eu e T. não iremos esquecer. Disse que já teve tudo na vida. Conheceu a luxúria (ouvia sistematicamente a mãe dizer que tinha perdido 7 mil contos no casino...), teve um filho, divorciou-se, fez-se refém da droga («mas não eram desses químicos que queimam a mente. Continuo a ser inteligente...»). Agora, a vida de David cabe nos dois sacos, com pequenas utilidades, que o acompanham para todo o lado.
David não lamenta a sua condição. Em vez disso, assume-se como alguém que deposita toda a sua fé em Deus («é Ele que me guia e que me dá forças. Todos os dias»). David tem o dom da palavra. Usa-a como poucos. E é, de facto, inteligente. Ao olharmos para David, enquanto fala, é fácil imaginá-lo de fato e gravata, bem sucedido, pai da família. Tanto disserta sobre a Europa como cita os nomes dos responsáveis de altos cargos públicos. Num dado momento, David traçou o perfil de José Sócrates. «Ele também é inteligente. Mas perdeu todo o carácter honesto. Sabe mentir. Deixou-se levar pelo desejo do poder. É um político igual a tantos outros», disse. David acredita que seria capaz de escrever um livro melhor do que qualquer obra de Saramago («o nosso Nobel da Literatura não sabe ser humilde. Lembram-se quando chegou ao aeroporto, em Portugal, e maltratou todos os jornalistas? Foi triste», confessou). David chegou a ter dezenas de páginas dactilografadas, que compilavam aquele que poderia muito bem ser o livro da sua vida. Mas rasgou-as («não ia longe... Não conheço ninguém que trabalhe numa editora»).
No final da conversa, pediu desculpa. Reconheceu que falou muito. Fez mesmo questão de nos acompanhar à entrada do Metro, poupando o silêncio e nunca deixando de partilhar a sua sabedoria. Chegou a recordar o tempo que passou no Curry Cabral, nas consultas de Psiquiatria com o António Lobo Antunes («é um tipo extremamente inteligente. Esse sim, pode dizer que é um verdadeiro escritor. Bem melhor do que qualquer um. Melhor, até, do que o Saramago...»). O universo, comparado com a ciência de David, é demasiado redutor e pequeno. David tem uma personalidade desmedida e uma sensibilidade que nos faz cócegas na alma.
Na viagem de regresso, os ensinamentos de David constituiram, para mim e para T., o passaporte para um momento peculiar de reflexão. Não faltaram coincidências: na carruagem do Metro, um passageiro, ao nosso lado, lia o livro «Sinto Muito», de... Nuno Lobo Antunes. E um amigo nosso, no blog pessoal, tinha dedicado o post diário a Sócrates e... à inteligência. Sinais ou pura coincidência? David terá, certamente, algo a dizer sobre isto...
1 comentário:
Muito bom este post. Muito obrigada por partilhar e contribuir para transformar o nosso olhar sobre os outros e o mundo à sua/nossa volta. Abraço! Laurinda
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