segunda-feira, 24 de maio de 2010

Éfe

Na guerra da vida contra a morte ganha sempre a segunda, por exaustão. Talvez tenha sido assim que F partiu, era um lutador, sempre o foi, desde miúdo. Lutou, sorridente, durante vários meses contra a sua inimiga, a leucemia. Creio que a via como uma brincadeira, coisa de putos, um desafio. Desde muito cedo que se habituou a vencer desafios. O pai emigrou e deixou-o sozinho com a mãe e as irmãs, único homem na casa, portador da responsabilidade de carregar o apelido da família e fazê-lo perpetuar, F agarrou-se à vida com garras de estivador e seguiu a direito, sem medo. Um dia, vi eu, pela manhã, bem cedo, levanta-se da cama e trata da sua higiene pessoal, toma o pequeno-almoço, pega na trouxa e sai para a escola, sozinho. Era uma criança, mas não precisava de ninguém, já era homem. Tinha 9 anos. Dono de um humor singular, era um aluno exemplar, tinha boas notas e era um desportista admirado por todos, foi, várias vezes, vencedor de provas regionais de BTT, vendia saúde.
Na sua aldeia, ao passar, F era cumprimentado por todos, novos e velhos, e a todos, sem excepção, era-lhes devolvido um sorriso afável, franco. Da última vez que o vi, sentado na cama articulada do IPO do Porto, mantinha no seu semblante o ar de quem nada deve à vida e sorria, como sempre sorriu. Estás bem puto? Perguntei. Sorriu. “Estou!” Respondeu sem desviar o olhar do pequeno computador portátil onde, atarefado, mantinha uma acérrima conversação via MSN com algumas amigas que, segundo ele, não o deixavam em paz. Está a correr bem, estás melhor? “Sim, falta-me fazer mais uma sessão de quimioterapia e depois acho que volto para casa”, disse ele com acentuada pronuncia nortenha e com aquele à-vontade de quem sabe como se lida com a doença. “Só me custa ver o meu pai chorar”.
A sua grandeza enquanto individuo, meio-homem/meio-criança que, enfermo, arranja forças para reconfortar os pais, as irmãs, os tios, as tias, primos, vizinhos e toda uma romaria de visitantes chorosos que vinham, aos magotes, à visita das quatro, é notória.
Lutou, lutou sempre. Sei que sim. Mas houve um momento em que desistiu, exausto, baixou os braços dormentes do esforço e parou de sorrir. A morte, nesse momento levou-o consigo, vitoriosa.
Deus, por certo, quis vê-lo sorrir…
Adeus Francisco.

3 comentários:

Makira disse...

Não acho que ele tenha desistido de lutar. Ou melhor, prefiro não acreditar. Prefiro acreditar que continuou a lutar com todas as armas. Mas nas batalhas, há umas que se ganham e outras que se perdem... esta a morte venceu. Para a próxima não sei se volta a levar a melhor! ai não leva, não!

الرجل البسيط disse...

Há razões porque a vida é uma merda. A morte é uma delas.

Anónimo disse...

"A desilusão, o fracasso, o esforço, o sofrimento e a morte… nada disso importa muito. Só dói verdadeiramente a falta de sentido."
(Paulo Geraldo)