sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O dia-a dia de um super herói disfarçado


Foi, pouco antes do almoço, que senti as suas primeiras investidas. Uma leve cólica, ocasional, um deslocar tímido do gás. A coisa prometia, mais cedo ou mais tarde, não haveria nada a fazer, teria que ir ao WC. Almocei, como de costume, de forma serena e equilibrada comendo, ao contrário do costume, - pito assado- , uma bela lasanha Pingo Doce. Terminado o repasto, dirigi-me ao meu local de trabalho, não sem antes ter bebido aquele maravilhoso café em copo frio que, até á data, tem feito as delicias dos colegas com quem trabalho e que, diga-se em abono da verdade, é considerado por muitos o ex-libris do piso 5.
Não me foi dado tempo, sequer, para terminar o longo trajecto que separa a porta de entrada, da minha secretária.
O alarme soou. Arregalei os olhos. Conjeminei, rapidamente, qual a fuga mais rápida, qual a solução viável para tamanho sufoco. Os nervos apoderaram-se do meu corpo. As pernas entorpecidas pelo mal-estar, pareciam não querer colaborar. Com esforço e, penso eu, visível pânico, lá cheguei. Estava quase. O extenso corredor foi vencido sem complicações. Fica só a faltar o ziguezaguear desconfortável da saída, está quase. A entrada, nesse momento, de alguns colegas que, tal como eu, regressavam do almoço, obriga a uma paragem forçada com vista a esclarecer pormenores “trabalhisticos”. O caos estava instalado. A desordem apoderou-se de mim, das minhas entranhas, do meu ser. A dor agudizava-se, o abdómen contraía-se em espasmos dolorosos, a porta branca casca-de-ovo abria-se, o fim estava próximo. Das duas soluções possíveis, paralelas, de fronte para mim, uma delas adivinhava-se impossível. Era a da esquerda. A porta do WC masculino que se encontra á esquerda de quem entra, estava visivelmente fechada. Por certo outro como eu, defecava, prazenteiro, gozando dos prazeres que o acto proporciona. Sem pensar, ditou-me o instinto a sábia decisão de, como é lógico, optar sem mais delongas pelo sanitário disponível. O da direita. Acendi a luz. Não acendeu. Hesitei. Verifiquei, num ápice, se a porta da esquerda se encontrava devidamente trancada ou se, apenas por educação, alguém a encostou. Trancada! Já não estava em mim, pressionei repetidas vezes o botão que, por norma e inexplicavelmente faz ligar a luz daquele espaço mas, foi em vão. A estúpida da lâmpada teimava em não acender. Pensei: - Vou a outro piso! Repensei: - Poderá acontecer-me o mesmo! Entrei na casa de banho ás escuras trancando, ás apalpadelas, a porta atrás de mim.
Já estava, agora era safar-me! Tacteando, levantei a tampa da sanita. Era lindo se não o tivesse feito! Baixei as calças certificando-me de que nada foi deixado ao acaso e deixei vir a mim, proporcionadas pela desova, ondas avassaladoras de prazer reconfortante.
Voltei a mim. Sou novamente o “eu” que conheço.


Agora mais lúcido, apercebi-me que o que me separava do mundo real era apenas a luz ténue que passava por baixo da porta e que vinha da zona dos urinóis. Zona contigua ao espaço que agora ocupava. Isso e o som pouco nítido dos passos e vozes que passavam junto daquele WC. Pensei na minha triste imagem. Que vexame. Que falta de dignidade. Eu e o ridículo, os dois, na companhia um do outro, naquele espaço exíguo. Triste figura humana.
Assaltou-me, de rompante, um pensamento: Haveria papel, naquela latrina inóspita? E se não houvesse? Que faria eu? E se, por engano, alguém tivesse colocado o resto do rolo de papel higiénico noutra parte daquela casa de banho? Talvez o colocassem por baixo do autoclismo. Só para, certamente, dificultar a tarefa a outros que, como eu, tiveram a coragem de dar o passo, ás cegas, para o abismo e ficar, por “mea culpa”, em tamanho desespero. Fui confirmar, apalpando. Estava lá, no sitio de costume e era suficiente para pôr fim á minha miséria. Baril. nem tudo é mau. Mentira! Apagou-se, naquele momento, a luz da casa de banho contígua á minha. Agora sim, da penumbra passei á escuridão total. Indistintas vozes ouviam-se, ao fundo, deixando antever a possibilidade de, a todo o momento, entrar alguém de rompante na casa de banho e, de forma automática, fazer ligar a luz. As vozes foram-se extinguindo gradualmente até deixarem de se ouvir por completo.
Alguma coisa teria de fazer. A estadia, além de demorada, estava a tornar-se desconfortável. Diz-se que os cegos, desprovidos do sentido da visão, desenvolvem os quatro sentidos que sobram. É bem verdade, pensei eu. Dei comigo a verificar que naquele momento me doíam as pálpebras de tanto arregalar os olhos em busca da luz que não havia. As narinas, doridas de tão abertas que estavam, tremiam, exaustas. O odor era desta vez, mais pestilento que das outras vezes que me dediquei a tal pensamento. Estava a sofrer. Era o momento de por fim àquela situação. Tacteei, cortei o papel que julguei ser necessário e procedi ao movimento de limpeza das partes. Pus-me de pé. Tratei de vestir as roupas que antes depositei nos tornozelos e pressionei o botão de descarga. Finalmente, acabou tudo.
Saí vitorioso. Sentia-me bem. Foi um teste á resistência humana, e eu ultrapassei-o.
De novo na empresa, passei orgulhoso pelas fileiras intermináveis de colegas que, sentados nas suas secretárias, nem por sombras adivinhavam, a tremenda batalha que tinha acabado de travar. Olhei-os de soslaio. Senti-me diferente.
Voltei ao meu local de trabalho, extenuado. Ao sentar, a dúvida assaltou-me: - Terei limpo o rabo á camisa?

1 comentário:

Manuel Ruas Moreira disse...

É pá! Há já algum tempo que não vinha espreitar o Street Spirit e não sabia desta novidade...

José Madureira também escrevinha práqui?!

Ganda pinta!

Ainda não tive tempo de ler todos, mas apraz-me o que vossa excelência tem tido a amabilidade de partilhar connosco, comuns mortais.

Um amplexo do Man-El