sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Rabanadas e Buscopan®

E assim cessou mais uma temporada natalícia que, certamente, permanecerá para toda a minha existência, bem fundo do coração. Algo me dizia que estavam criadas as condições para ser um Natal inesquecível, repleto de miminhos e arroz doce. Objectivo cumprido. E, para não destoar, a coisa colidiu mesmo com a noite de consoada.

Eram 20h30 e já eu estava nas urgências – diga-se em abono da verdade que, nestas merdas, não gosto de perder tempo; além disso, dizem as regras de etiqueta e de bons costumes que é de extremo mau gosto aparecer tarde e a más horas. Foi assim que os lixei. Auxiliares, enfermeiros e médicos na boa vida (bem os vi, a todos, com bolo rei e rabanadas no canto da boca), num hospital que mais parecia um hotel fantasma (é oficial: noites de consoada e em que joga o Benfica são as melhores para check-ups, visitas e exames de rotina).

Valeu-me a paciência e a sabedoria do Dr. Igor Kalashnikov (ou algo parecido; fui incapaz de lhe fixar o apelido, mas tenho a certeza que soava a instrumento bélico), proveniente de um qualquer país do leste. Estou-me nas tintas para a nacionalidade do homem, até porque – mesmo não me tendo ofertado qualquer sorriso ao longo da noite (por momentos, quis-me parecer que estaria a ser atendido por um humanóide sem emoções) –, a realidade é esta: fez-me uma apalpação abdominal tão boa que, por breves instantes, me fez esquecer como é bom gostar de mulheres. Umas mãos daquelas não deviam andar assim, à mercê das administrações hospitalares, a desenrascar urgências. Aquilo era coisa para estar num SPA. Ou, vá lá, na minha casa (e a tempo inteiro).


Mas quando a esmola é muita o pobre desconfia. Depois do questionário clínico e da apalpação memorável, toca a fazer análises ao sangue – logo eu, que tenho um pavor a agulhas (se fosse dependente da heroína, acho que estaria, basicamente, fodido). E já que o enfermeiro iria estar com a mão na massa, o melhor seria administrar de seguida uma bela dose de Buscopan® na veia. Dizia-me o gajo, após me ter sugado metade do sangue que circulava neste corpinho: «tem é que ser devagar, porque senão o medicamentozinho não faz efeito». Foda-se. Uma eternidade naquela merda. Ainda por cima, com um enfermeiro que nada ficava a dever a essa paneleiragem que grassa por aí, neste mundinho cão e cruel. E depois o «medicamentozinho» tem um efeito giro: um gajo tenta focar ao perto, mas, em bom rigor, não vê um boi.
Há sempre um lado positivo. No caso em apreço – e por causa de mim –, ficaram justificados os ordenados do pessoal de serviço. Aliás, por causa de mim e da velhota (dar-lhe-ia uns 80 anos) que deu entrada, às 23h e tal, com queimaduras de 2.º grau. Aí, sim, confesso que tive mesmo pena do que vi (desfocadamente, mas vi): a senhora vivia sozinha, passou a consoada consigo própria e queimou-se com um saco de borracha, daqueles que levam água quente. Pior: ainda arranjou forças, no fim daquilo tudo, para aplicar benzina e uma pomada (que já nem sequer se vende em Portugal) em cima das mazelas. Estava de tal modo pálida que nem uma só palavra lhe saia da boca. Nem se sentia no direito de expressar as dores intensas que lhe percorriam o corpo inteiro. Admito que sai, já de madrugada, mais aliviado das dores – mas, seguramente, com o coração despedaçado.

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