sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A sorte calha-nos à nascença

Há dias conheci uma criança. Não me ficou o seu nome e por isso chamar-lhe-ei Rafael. Terá, se não me falha a apreciação, seis, sete anos. Loirinho, com aquele cabelo semi-encaracolado e jeitos rebeldes, aparentemente indomável que, a meu ver, faz pensar que o petiz é dono de um comportamento tão selvagem como aquele que o seu escalpe aparenta. Mas não. O Rafa (prefiro chamar-lhe assim), desloca-se de forma relativamente lenta. Até ver, as suas pernas demonstram a ausência daquela energia eléctrica que é característica nos miúdos desta idade. Creio que não nasceu com nenhuma deficiência física. Também me pareceu que não nasceu com nenhuma deficiência mental mas, no breve contacto que tive com ele, fiquei convencido que algo não funcionava correctamente dentro daquela cabecinha loira.

Sobre a cabecita loira, observei que a zona da testa fazia lembrar o homem elefante. Era excepcionalmente disforme, assimétrica, demasiado sobranceira, empenada e os seus ossos, cobertos com uma pele que já foi de bebé e que agora apresenta um sem-número de cicatrizes, estão anormalmente disformes. Não articula bem as palavras e com aquela idade ainda se baba ligeiramente. Tem olhos azuis. Tão azuis e tão normais que, neste contexto, quase me fazem chorar.

Quando o cumprimentei, naquele dia, senti uma mão áspera e anatomicamente imperfeita. Não estava bem vestido. Também não estava muito limpo.

Momentos depois, apareceu a mãe. Veio buscá-lo á escola. Abraçou-o quando ele correu para ela, de braços abertos e visivelmente feliz por a ver. Parecia uma mãe normal, igual a tantas outras que pude observar, noutras ocasiões, naquela escola. Nesta senhora destacava-se apenas, e não sei se me vai ser fácil descrever, uma espécie de olhar amoroso, uma atitude carinhosa com tudo e com todos, que se percebe, mas que não é comum.

Mais tarde, alguém me contou a história do Rafa. Diz-se que foi filho de boas famílias. A mãe, que não é a sua, é a dona do colégio para meninos órfãos onde o miúdo vive desde muito bebé. O Rafa não é órfão. As entidades competentes, há uns anos, retiraram-no do seio familiar. Os seus pais, ao invés de dar amor, enchiam-no de pancada, tão violentamente que o desfiguraram e o mutilaram de tal forma que os seus ossos, nomeadamente os da cabeça, assumiram formas diferentes dos das outras crianças. Foi esta a razão que alterou o bom funcionamento do cérebro deste loirinho.

O Rafa teve sorte, esteve quase, mas não morreu.

Uma vez vi o Rafa rir ás gargalhadas. Naquele momento, pareceu-me feliz.

Se acreditarmos que estamos cá no mundo com um propósito, o do Rafa será que é o de nos mostrar, quando estamos tristes achando que tudo é mau, que quando tudo é mau ainda podemos rir?

3 comentários:

Makira disse...

Quero agradecer-te porque por teu intermédio "conheci" o Rafa e esquecer de mim para pensar que há na vida um Rafa que merece ver-me rir e por quem vale a pena rir... Andava esquecida e afastada desses risos que existem mesmo quando tudo é mau...

José Madureira disse...

"only one life, live it"

Acho que isto foi dito por alguém famoso

الرجل البسيط disse...

Agora mataste-me. A história do Rafa é um valente safanão.